Por que separado se escreve tudo junto e tudo junto se escreve separado?
Por que o cafezinho vem acompanhado de um biscoito e um copo d'água?
Certa vez, inocentemente, perguntei a uma amiga, enquanto serviam o café, "por que o cafezinho vinha acompanhado de um biscoito e um copo d'água?". Como essa pertence a uma classe de perguntas que não esperamos uma resposta, fiquei de queixo caído quando ela me disse em tom solene "bom, não convém tomar café de estômago vazio, por isso temos o biscoito. A água serve para tirar o gosto do biscoito da boca e deixar o paladar pronto e limpo para receber o café". Confesso que, primeiro, sempre tomei o café com o biscoito e deixei a água para depois; segundo, utilizei várias vezes a explicação (com o mesmo tom solene) e com a doce sensação de possuir um conhecimento inútil. A mesma sensação que me leva a escrever este post e que, provavelmente, você irá sentir ao reproduzi-lo quando algum engraçadinho vier lhe perguntar "por que separado se escreve tudo junto e tudo junto se escreve separado.
O prazer de responder perguntas sem resposta
O tema parece bobo, mas só parece. Entender por que separado se escreve tudo junto e tudo junto se escreve separado implica ter um relativo conhecimento de língua. Para explicar esta brincadeira, poderia utilizar a “Arbitrariedade do Signo” de Saussure, a “Forma e Sentido” de Benveniste, porém utilizar essas teorias geniais com nossos amigos num bar seria, mais ou menos, como o personagem Ross do Friends tentando falar de paleontologia com o seu grupo.
Gosto de tratar o tema de uma forma bastante simples: falando de tonicidade. Isso mesmo, aquela historinha de paroxítona, oxítona e proparoxítona que sempre nos pareceu algo menor nos estudos da língua. Na escola, não se comenta uma das propriedades mais interessantes da sílaba tônica: ela é uma espécie de “delimitador de palavras”. Quando ouvimos uma tônica, nosso cérebro sabe que aquela palavra está chegando ao fim e que logo virá uma outra palavra (por isso, entre outras coisas, a sílaba tônica costuma estar sempre ao final dos vocábulos). Se não houvesse a famosa sílaba tônica, dividir palavras dentro da nossa cabeça seria uma tarefa mais complicada. Isso é tão interessante que muitos programas de reconhecimento de voz possuem um algoritmo que tem a tônica como um elemento importante para reconhecer e dividir as palavras. Então, a grosso modo, poderíamos dizer que sepaRAdo se escreve tudo junto porque tem apenas uma sílaba tônica (ou seja, não há a possibilidade de uma divisão significativa dentro da língua) e TUdo JUNto têm duas tônicas (portanto, não poderia ser escrito tudojunto).
Às vezes, é útil pedir ao óbvio que se justifique
Vou tentar ir um pouco além do óbvio. Há uns anos, uma professora de 4º Ano da Educação Infantil me disse que um aluno era “tão jumento” que escrevia rapidamente separado (rapida mente). Com um pouquinho de irritação, confesso, lhe disse que este menino seria um futuro linguista, já que mesmo sendo tão jovem era capaz de reconhecer que RApidaMENte (como todos os advérbios terminamos em "mente") possuía duas sílabas tônicas e que só se escrevia tudo junto por convenções arbitrárias (isso quer dizer que se convencionou sem maiores explicações que a tônica estaria no men, não no ra inicial como no rápidamente do Espanhol – o qual também foi definido por uma convenção arbitrária). Ou seja, linguisticamente se explica por que as crianças nas séries iniciais cometem este tipo de "equívoco". O aluno, na verdade, não está “errando”, mas, aos poucos, está se apropriando de uma nova forma de se estar na língua, que é a escrita. Nesse processo, irá por associação aplicar uma das propriedades elementares da divisão de palavras: o reconhecimento da tônica – o qual é um dos elementos básicos do processo de aquisição da linguagem.
Inútil é aquele que desconhece
O que mais gosto nos pré-vestibulandos é a sua ânsia de reproduzir seus conhecimentos (mesmo os inúteis). Se, numa roda de bar, alguém bate a bisnaga de mostarda na mesa e ela espirra, eles te darão uma longa explicação sobre as leis de Newton. Por alguns anos, dei aula em cursos pré-vestibulares e, recentemente, encontrei um aluno que se lembrou "de cara" da explicação da pergunta que motivou este post. Ele me disse que, no ano em que lhe dei aula, não passou no vestibular, mas que a minha explicação sobre esse “grande mistério” lhe rendeu boas conversas, uma tentativa de cantada (que não me atrevi a saber detalhes) e uma admiração de sua mãe pelas minhas aulas (nem tudo nesta vida pode ser explicado!). Ter esse reconhecimento é a prova cabal de que conhecimento algum é inútil.
Tem alguma curiosidade sobre língua? Mande para a gente!